sábado, 8 de outubro de 2016

A vista da janela


Essa é a primeira imagem que vi da sociedade. Em mais de 20 anos, pouca coisa mudou nessa paisagem. Rio transformado em esgoto, casas que caem com a chuva, outras que inundam. Em todo verão, arraias que caem no Dique-esgoto e levam os entusiastas a correrem por elas, destoam da falta de lazer, faz-se opção única.

A gente até acha feio olhar para isso, esquecendo-se do fato de que olhar de lá para cá causa a mesma repulsa, as mesmas críticas de casas mal feitas, sem pintar, de que lá é favela.

Ali à direita há casas que afundaram em 1996. Nove famílias engolidas. No centro da imagem, asfalto e saneamento básico ainda são pautas de luta e promessas sem vergonha. À esquerda, casas ainda caem com chuvas, e um dos únicos dois campos de futebol disponíveis, feitos pelo povo.

Dos que eu sabia o nome, dezenas já morreram, por engano, por acertos de contas, por medo de si mesmos, por acidentes. Mas sei que, na verdade, foram centenas os que presenciaram essa sociedade por menos tempo do que eu. Os que sobrevivem, vivem a trabalhar, acreditando que um dia verão outra paisagem pela janela.

Pouquíssimos de nós puderam realizar o sonho de ser o que queria ser. E quem deveria ter que desistir de um sonho desse tamanho? É que a partir daqui, precisamos sonhar com 10 vezes mais forças para realizar. E ninguém pode ser culpado por não suportar tanta pressão. Quando algo acontece por aqui e os jornais querem mostrar que não somos de lá, dizem "nas proximidades de Salvador", ou "na comunidade de Boa Vista de São Caetano". Quando um morador ganha ouro olímpico, o bairro existe, a prefeitura o limpa, e a conquista é da cidade.

Como já foi decidido que não há espaço digno para todos, alguns precisam pagar a conta, precisam ter uma escola pior, nenhuma estrutura de lazer, nenhum posto de saúde, nenhuma praça, esgoto a céu aberto, nenhuma encosta de concreto, apenas três linhas de ônibus mais uma complementar. Alguns precisam trabalhar por conta própria, trazer trabalho para casa, trabalhar com os pais, e até não ter como trabalhar.

Seria muito fácil se tudo dependesse de querer. A gente aprende que é normal ser esmagado e aceitar de cabeça baixa, porque precisa ser honesto. A gente aprende que quando falta comida a culpa é nossa, porque não trabalhou o suficiente, ou não mereceu ganhar mais. A gente aprende que o tráfico vem pra cá porque aqui é lugar das coisas ruins. A gente aprende que se der algo errado, com certeza estava envolvido. E aprende que morar num prédio é ser superior.

Há 26 anos partilho a janela, a vista, a laje, os sonhos, os cansaços, os choros e os réveillons com toda essa gente. Nós cuidamos uns dos outros e rezamos uns pelos outros. Não é fácil subir tantas escadas e ladeiras todos os dias, nem sobreviver para contar. Não é fácil ter que mostrar ao mundo que algo está errado e mesmo assim ouvir que um "homem de bem" sofreu tudo isso e continuou "de bem". Não é fácil querer viver o que é nosso por direito.

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